Acordo depois de um sonho ruim.
Encontro-me no meu quarto, de bruços, sob a cama.
Viro-me.
Acima de mim, gira incontáveis vezes o ventilador, como hélices de um helicóptero.
Uma flecha de luz que entra pela janela perfura-me o rosto.
Fecho os olhos e respiro profundamente.
Expiro.
Giro o tronco 45 graus na horizontal.
Agora mais 45 na perpendicular.
Dica de ouro do fisioterapeuta:
Assim você preserva sua coluna de uma hérnia de discos.
Na beirada da cama, apoio um dos cotovelos sobre os joelhos e, com a outra mão, acaricio a nuca.
Inspiro e expiro.
Ouço o som da Lua vindo.
Lua é uma pastora alemã.
Ela sabe que horas eu acordo.
Com uma energia de gente chata, pula em cima de mim e começa a me lamber. E a morder.
Ela late, suprimindo qualquer possibilidade de continuar dormindo.
Retribuo o carinho.
Ontem, esqueci de pôr comida para ela à noite.
Mas aqui está, demonstrando amor por mim. Lambendo-me todo.
Trouxe até a bolinha com que gosta de brincar.
Jogo-a para fora do quarto.
Ela sai em perseguição.
Impressionante.
Mesmo deixando-a com fome a noite inteira, ela veio até a min.
Ela me ama?
Tem pessoas que são assim.
Ainda amam, mesmo que você as deixe com fome.
Ou será que Lua está apenas chamando minha atenção para que eu a alimente?
Tem pessoas que são assim.
Fingem afeto para receber amor.
Lá vem Lua, com a tigela na boca.
Dou uma risada zombeteira.
Pego a tigela da boca dela e me levanto.
Com alguns passos, já estou na despensa, onde está o saco de ração “Fome Zero”.
Ela balança o rabo freneticamente, como limpadores de para-brisa durante uma chuva torrencial.
Aliás, chove um pouco lá fora.
É a ração mais barata do petshop. E também a pior.
Ela ama.
Tem pessoas que são assim.
Deixo-a lá.
Mais alguns passos e estou no banheiro. Olho-me ao espelho.
Jovem com traços árabes. Mouro de cabelos pretos e duros. Face quadrangular, com o maxilar bem desenvolvido. Sobrancelha e barba fartas, mas bem delineadas.
Olhos negros como a noite.
Tomo banho e ajeito-me para o trabalho.
Pronto.
Lá vem Lua, saltitante, e pula em cima de mim.
As pastoras alemãs soltam muito pelos.
Além disso, me deixa todo amassado.
De face avermelhada, semicerro os dentes. Ergo a mão direita, em riste. Vocifero:
— Sai!
É o fígado reclamando.
Lua se evade e volta para o chão. Olha para min de orelhas em pé, olhos esbugalhados, brilhantes, dilatados como discos de vinil. E a língua de fora.
Ela me dá dois latidos.
O rabo peludo balança pra lá e pra cá, como se a varrer aquele chão.
Tem pessoas que são assim.
Ponho-me a caminhar em direção à garagem para pegar o carro. Lua me acompanha e, de leve, abocanha meu calcanhar.
Vocifero:
— Sai, Lua!
Ela salta para trás. Os olhos brilham mais forte. Imagino um leve sorriso naquela boca com dentes afiados.
Tem pessoas que são assim.
Abro a porta do carro e entro. Abaixo os vidros.
Lua fica na porta de casa a me olhar, absorta.
Quando giro a chave, o motor se acende. Uma mistura de ar e combustível é ignitada pela centelha da vela de ignição, causando uma explosão controlada que move o pistão. O carro funciona.
Lua inclina a cabeça para um dos lados. A língua pende.
Engato a ré e aciono o botão do controle para o portão se abrir.
Esqueço que, todas as vezes, preciso prender essa cachorra para que não fuja.
Tem pessoas que são assim.
Com o portão meio aberto ainda, ela sai em disparada para o meio da rua.
O sangue sobe à cabeça, dou um soco no volante à frente. Entredentes, vocifero:
— Droga!
Penso naquele estado de vigília após acordar. Naquela baba nojenta que precisei de um banho para tirar.
Na ração barata.
Na minha voz.
No meu punho em riste.
Nos pelos que cuspi.
Desligo o carro. Saio. E corro em disparada atrás daquela Lua que se põe.
Grito:
— Lua, volta aqui, já!