Acabávamos de chegar em casa, eu e meu amigo, depois de buscá-lo no hospital de urgência da cidade. Ele sofrera um acidente de moto. É moto-uber.
— Cara, foi só um instante… Abaixei a cabeça pra olhar o celular preso no guidão e… depois não vi mais nada.
A vida é só um sopro. Uma piscadela.
Ele caminha até uma cadeira e se senta da maneira mais errada possível: de frente para o encosto. Senta-se assim porque, em seguida, eu vou passar remédio nos ferimentos das costas.
Graças a Deus, foram só raladuras e escoriações. Talvez uma luxação no ombro, provavelmente. Nenhum osso quebrado.
Deus lhe deu mais uns sopros.
— Essa porra vai doer demais!
Ele faz uma cara de quem chupou o limão mais azedo do mundo ao ver o frasco da medicação. Parece que já tem experiência com quedas de moto.
Peróxido de hidrogênio. Vulgo: água oxigenada.
Desinfeta e limpa.
Dói e irrita.
Quando o H₂O₂ entra em contato com o ferimento, rola uma reação química visível pelas bolhas de oxigênio:
2H₂O₂ → 2H₂O + O₂
Efervescência: o peróxido reage com as enzimas do tecido, tipo catalase.
Bolhas: libera oxigênio em forma de espuma.
Parece chantili.
Só que cheio de micro-organismos infecciosos. Se não forem mortos, podem entrar na corrente sanguínea, causar uma infecção e você ir a óbito.
Você prefere morrer por amor ou por uma bactéria?
— Fui olhar a mensagem da minha namorada.
Posiciono-me a suas costas para esguichar a medicação.
É daqueles que você pressiona no meio e sai aquele filete de remédio formando um arco.
Imagino-me mijando num poste.
O limão fica mais azedo na boca do infeliz.
Sofre por antecipação.
É ansiedade que chamam?
Ele diz que ainda não está doendo. Quando alguém sofre um acidente de moto, o corpo libera substâncias que reduzem a dor. Endorfinas e outros opioides endógenos ativam vias analgésicas descendentes, inibindo a transmissão de dor no corno dorsal da medula.
Trocando em miúdos: ele ainda tá de sangue quente.
— Ai!
Ele geme.
Pergunto se é assim que ele faz quando goza.
— Ha-ha-ha!
Desato a gargalhar. Ele ri também. Uma lágrima escorre solitária.
— Mano, vai te foder…
Ele me chama de mano.
É um dos meus melhores amigos.
Eu pergunto:
— Tá pronto, Gabriel? Tem que limpar. E de qualquer formar tem que passar por isso mesmo — dou um risinho zombeteiro.
Resignação que chamam.
Ali parece valer o ditado:
Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
E, no fundo, é mesmo.
Tem algo de engraçado no sofrimento alheio.
Assim…
Depois que passa.
Quando você vê que não foi tão grave assim.
Aí você ri da situação.
Mas continua sendo uma gozação com a dor do outro.
Ele geme.
— Vou esguichar o remédio.
— Tá…
A reação começa.
Ele se retorce. Geme. Cerra os dentes.
Eu ainda ria um pouco. Mas quando ele grita:
— AAAAAAI!
Quase tenho um orgasmo.
— Puta que pariu, Gabriel! — digo em meio às gargalhadas.
O momento fica tenso. Ele vocifera:
— Um pano, um pano! ME DÁ UM PANO!
Em meio às minhas gargalhadas, começo a suar. As mãos tremem.
— HÁ-HÁ-HÁ!
Tem gente que entra em crise de riso no modo “luta ou fuga”. Lembrei da vez que meu ombro deslocou e pedi pra minha namorada ligar pro médico. Ela começou a rir.
Ela faz enfermagem.
Sempre pergunto em qual hospital ela vai trabalhar quando se formar.
Quero passar bem longe de lá.
— Pra quê tu quer um pano? — pergunto.
Entre gemidos, ele responde:
— Aaaai… pra morder!
Penso em vampirismo. Em mordidas eróticas.
Masoquismo dá prazer?
Olho em volta, procurando o tal pano. Ele continua a gemer. Começa a ensaiar um choro, abaixa a cabeça. Entre soluços, solta:
— Deus tem um propósito pra mim…
A ideia de propósito reconforta, mesmo em meio à dor.
— É um teste de fé.
Uma provação divina.
Jó 2:6 — “Disse o Senhor a Satanás: Eis que ele está no teu poder; mas poupa-lhe a vida.”
Eu, particularmente, responderia:
“Ei, não precisa me testar não. Eu creio em Você.”
Ele geme de novo. Suplica:
— O pano… por favor…
Ponho a mão sobre calça e avanço minha cintura para frente, faço uma bela trouxa de pano grande e grossa.
Os pensamentos intrusos me vencem. Solto, entre risos histéricos:
— Morde aqui!
HE-HE-HE!