Dois amigos se encontram para trocar uma ideia num restaurante três estrelas da cidade. Um ambiente harmônico e agradável. Calmo. Sem som ambiente. Apenas os ruídos de outros amigos, famílias e outras pessoas conversando por ali.
Os dois encontravam-se mais afastados, numa área de varanda bem posicionada. Dali, viam todos os presentes na parte interna do recinto. Tinham uma visão panorâmica de tudo, inclusive de quem entrava e quem saía.
O lugar era estratégico.
Gostavam de “observar todos ali”. Os olhares, as falas, os gestos, as expressões faciais, o caminhar, os respectivos tratamentos.
E imaginar o que se passava na cabeça de cada um deles.
Até que chegou um casal. Jovens, bem vestidos e bonitos.
Um dos amigos vê aquilo e, de súbito, surpreende-se. Não pelo fenômeno em si, essencialmente, daquilo que testemunhará, mas pelo fato de reconhecer um deles.
Ele diz, ajeitando-se na cadeira e logo após inclinando-se à mesa como a falar em sussurros:
“Caralho, conheço aquele cara. E…”
Um riso zombeteiro.
“Aquela não é o namorada dele.”
Estranho, pois a maneira como eles chegaram denota claramente um vínculo amoroso.
Os dedos entrelaçados, corpos próximos, faces rosadas de “apaixonados”.
O outro amigo, esparramado na cadeira, quase a transformando em uma cama, vira a cabeça sobre o ombro para ver aquela cena e dá uma gargalhada histérica. Dos dois ali, ele é o mais espalhafatoso. Suburbano.
“A-ha-ha, puta merda!”
Ele bate na mesa.
O amigo o repreende:
“Agora tu vais e acenas para eles, idiota. Diz que a gente os viu.”
Ele comprime os lábios.
O “idiota” se contém, mas mantém o riso de canto de boca.
“Foi mal.”
Eles riem.
Ambos, de alguma forma, eram diametralmente opostos.
Este último chama o amigo que estava à sua frente de Lord.
E ele o era.
Muito elegante. Branco, caucasiano. Cabelo bem encaracolado numa mistura de amarelo e laranja. A barba grande, mas muito bem cuidada. Dentes brancos.
Bem trajado. Camisa de linho, tecido petit piquet. Relógio dourado no pulso.
Um whisky e um cigarro lhe acompanhavam ali naquele momento.
O outro era mais “arruaceiro”.
Mouro, do cabelo duro, de jeito mais bruto.
Também de barba grande, mas sem nenhum cuidado, fora uns ajustes aqui e ali; no entanto, percebia-se um certo desleixo.
Camisa preta comum, lisa, daquelas que se usa no dia a dia. 100% algodão.
Esparramava-se à mesa como se estivesse em casa.
Um chope o acompanhava.
Apesar das diferenças, se davam bem. Discutiam muito questões existenciais, filosóficas, sociais. De tudo.
Tudo para eles era motivo de reflexão.
O da barba malfeita toma um belo gole de chope. Escorre um pouco de cerveja pelo canto da boca. Passa a mão, num gesto automático, mas logo se lembra do guardanapo.
Ele dá um riso zombeteiro e provoca uma “filosofia”:
“Sabia que a infidelidade pode salvar um casamento?”
Os dois amigos ali eram casados.
O Lord traga o cigarro, ergue a cabeça para o alto e assopra aquela fumaça.
Ele olha para o casal que acabara de se sentar à mesa e volta para o amigo. Com um riso sarcástico de canto de boca, ele diz:
“Tá, qual vai ser a desculpa da vez para tu querer justificar o fato de tu trair a esposa? Você quer me enganar, se enganar ou nos enganar?”
O outro amigo baixa o olhar e ri-se.
Não por vergonha da sua imoralidade, mas porque acha engraçada a sagacidade das palavras do amigo.
Ele meneia a cabeça e aumenta o tom do riso.
Até porque não há o que se envergonhar. O Lord à frente dele também teve um passado e… hoje ele só está mais “quieto”.
O principal ali é que ambos conversam com o outro como se estivessem conversando consigo mesmos. Então, não havia hipocrisia ali. Apenas reflexões.
O espalhafatoso se ajeita um pouco na cadeira e diz:
“Cara. Vai por mim, aquele mano, depois que sair daqui e encontrar com a real namorada, vai dar uma surra de pau que ela nunca mais vai esquecer.”
Ele retirar os óculos, esfrega os olhos.
“A culpa, pow. A culpa vai transformar o casamento deles.”
Ele os recoloca e continua:
“Já viu como o arrependimento faz a gente mudar nossos comportamentos? Ainda mais quando a gente ama o nosso cônjuge. Por ter errado, a gente busca compensar aquilo. Contrabalancear. Reparar e restituir. Então… imagina o homem que trai. Cria-se nele – o que ama, é claro – o arrependimento e, por conseguinte, irá ele compensar aquela falha. De que forma?
Vê… Ela passa a ser mais cuidada, mais carinhosa, cede aos anseios da amada, trata-lhe como princesa. Às vezes, até a própria mulher acha estranho aquilo. Ela pensa: ‘o que aconteceu, amor, está tão carinhoso?’
Salvando nosso casamento.
E mais: se se arrepende, ora… é porque algo que não gostaria, mas fez. Não por um querer diretamente, fez por um impulso. Nietzsche dizia: o instinto não é um erro, mas parte do ser humano. Então…”
O filósofo com a palavra é interrompido pelo garçom que trazia outra caneca de chope.
“Estás a rir-se de mim?”
O Lord solta um: “te foder”.
O suburbano olha de soslaio para o casal que foi o gancho para a temática.
Ele continua:
“Cara, tu achas mesmo que ele ama aquela mina ali?”
“Ele só quer aliviar um stress interno.”
“Esvaziar o saco.”
“Reproduzir.”
“Sexo.”
“Agora eu te digo, na hora que ele der a bela da gozada, vai bater aquela culpa – se ele ama a esposa oficial, e aí… a velha, boa e tradicional máxima cristã”.
O celular toca sob a mesa. Uma mensagem. A esposa do Mouro pedindo um Pix. Ele abre o app do banco e envia.
Ele se volta para o amigo da frente e diz:
“Vê, eu tô na culpa. Ela pediu e eu mandei sem perguntar o porquê. Com certeza ficou feliz. Ou, no mínimo, satisfeita.”
“Quando eu chegar, vou dar uma bela foda com ela. Beijá-la dos pés à cabeça. Dizer-lhe que é minha vida. E depois ela repousará no meu colo, sentindo-se segura.”